sexta-feira, 28 de março de 2014

Uma nota sobre o amor, de Pedro Gabriel



Não resisti. Precisava compartilhar mais um texto maravilhoso do Pedro Gabriel, autor de Eu me chamo Antônio. Aproveite!


[uma nota sobre o amor]


Aperte o play que o texto vai começar. Tenho pouco tempo. Inspiro-me no jazz e improviso algumas palavras. Saio para passear para um destino aleatório, as músicas vêm comigo em modo shuffle e dão as mãos aos meus ouvidos. Imagino como seria o amor se este durasse o tempo de uma canção.


0min23s


Os primeiros trinta segundos são cruciais. A gente nunca sabe o que vem pela frente. Se o que nos espera é uma levada de punk, um batidão de funk ou uma sinfonia interminável daquelas do tempo de Beethoven. Ainda andamos desatentos, angustiados. Na sombra desenhada pelo sol o que aparece é um menino assustado que não sabe aonde ir, nem se vai chegar nesse destino aleatório. Mas é inevitável: num esbarro, numa rua sem saída, numa olhada distraída, o amor sempre há de acontecer. Abro um sorriso, a música continua.


1min12s


O primeiro minuto é decisivo. Os instrumentos começam a ganhar espaço e se arranjar na linha melódica. Cada um no seu devido espaço, todos em harmonia. Ah, se as pessoas escutassem mais as flautas, os pianos, os violões. Tenho a mais absoluta certeza de que teríamos menos vilões. Você está comigo? A voz no fone direito me tranquiliza. Pelo timbre parece ser a Nina Simone. Quando menino, eu achava que ela fosse brasileira. Pelo nome, talvez. Na época, não diferenciava inglês de português. Hoje, nada disso importa. A música tem linguagem própria, tem conexão direta com os sentimentos, e sentimentos não têm fronteiras. O amor agora me dá as mãos, o refrão ameaça entrar.


1min53s


Em coro, admito: você é mais bonita que um solo do Jimmy Page, que um verso do Cartola, que a voz da Nina Simone, que um álbum dos Beatles, que os olhos do Chico. Quando a gente se encaixa, o refrão fica tão mais bonito. É a mesma sensação de passear na beira de um lago em algum jardim no mês de maio. Em Paris, talvez. Eu, sol bemol; você, fá sustenido; e a gente se toca no mesmo arranjo. Cá entre nós: até um lá menor fica maior aqui, quando estamos juntos no mesmo acorde. Bom dia! Dormiu bem?


PAUSE


O amor também precisa de silêncios, a gente também precisa de pausas. Breves intervalos. Passamos da metade da canção e o sentimento ainda está inteiro. Intacto feito aquele bom e velho compacto do Chico. Estamos literalmente em Construção. Nenhuma faixa está arranhada. Não há mais aquela ameaça de um sonoro adeus. Já lhe emprestei meu casaco. Já não deixo a toalha molhada sobre a cama. Minha escova é um pouco sua. Olha só: a gente pode dar samba!


2min57s


Agora que o amor finalmente começou, a música parece encontrar seu fim. Ontem saí para passear e o setlist me fez lembrar você. Sempre desconfiei que o amor fosse aquela faixa escondida do nosso álbum predileto. Aquela que chega depois de um longo silêncio: compassos longos, com passos largos, com paciência, em paz, ciente. Ela demora, mas chega. Ele demora, mas chega. É sempre assim: a saudade bate em looping, a gente apanha em shuffle, mas insiste em não desmarcar o botão repeat.


STOP




Se você chegou até aqui, aguarde alguns segundos que o texto vai recomeçar já já.

2 comentários:

  1. Que texto mais lindo. Adorei a comparação de amor com músicas. Hoje em dia, tudo é muito corrido. Ninguém tem tempo pra mais nada. Não observamos mais as flores. Não nos admiramos mais com a beleza do canto dos pássaros. E isso é triste.
    Beijinhos

    http://vidasempretoebranco.blogpsot.com

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    1. Também amei esse texto! Se você gostou desse provavelmente iria gostar de a última carta do Pedro Gabriel também. Lá na página Sinestesia.
      De qualquer forma muito obrigada pela visita! :*

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